"Val'Dereth não se lembra de quando começou, nem sabe se ainda existe. Lá, até a verdade esquece de si mesma."— Fragmento de um viajante desaparecido
Três dias. Foram precisos três dias para alcançar as ruínas de Val'Dereth — embora, para Rayn, parecessem semanas. O tempo entre os passos era fluido, como se cada pisada os levasse para instantes desalinhados. Às vezes, o céu escurecia de repente. Outras, o sol surgia do lado errado.
— Estamos andando... ou deslizando? — perguntou Liora, franzindo o cenho enquanto observava o chão.
— Não importa — murmurou Saen. — Já estamos dentro da influência. A cidade age como uma fenda entre tempos. Val'Dereth é uma fronteira.
— Fronteira entre o quê?
— Entre o que foi... e o que ainda não aconteceu.
Rayn não respondeu. Desde que puseram os pés no caminho de pedra rachada que levava ao portão partido da cidade, sentia a mente vibrar. Lembranças surgiam e sumiam como fumaça. Às vezes, via-se criança novamente, correndo por florestas que não conhecia. Noutras, adulto e... velho, com uma cicatriz no rosto que nunca teve.
Não era só ele.
A cada curva, viam sombras de pessoas que não estavam ali — imagens cintilantes de soldados atravessando os becos, crianças rindo em silêncio, idosos que encaravam o grupo como se os reconhecessem. Aparições, sim — mas carregadas de algo mais. Presença. Elas pareciam lembrar que estavam vivos… enquanto o mundo ao redor esquecia.
Ao cruzarem o antigo portão, Rayn sentiu o peito apertar. A arquitetura era bela, mas gasta — torres tortas que pareciam prestes a cair, pontes suspensas por cipós cristalizados, janelas quebradas de onde saíam sussurros que se desfaziam no ar.
Mas o que mais chamava atenção era o relogião central, no coração da praça. Um colosso de engrenagens flutuantes, suspensas por fios de luz quebrada. Os ponteiros giravam de forma errática — às vezes paravam, às vezes voltavam, às vezes davam voltas completas em um piscar.
— Aquilo é... o centro do campo temporal? — Liora perguntou.
Saen assentiu.
— Tudo em Val'Dereth responde a esse mecanismo. Inclusive nós. Se ficarmos muito tempo aqui dentro...
— Podemos esquecer quem somos? — completou Rayn.
Saen não respondeu. Só observou o ponteiro dar meia volta para trás e parar. O som era seco, mas causava arrepios.
Eles seguiram. O fragmento da máscara que Rayn guardava tremia cada vez mais — como uma bússola que finalmente se alinha.
— Está aqui — sussurrou ele. — O próximo fragmento... está aqui dentro.
— Onde? — Liora apertou a adaga.
— Em algum lugar onde passado e futuro se cruzam. Num eco.
Passaram por becos estreitos, onde folhas secas caiam para cima. Em uma das casas, uma mulher flutuava no ar, imóvel — como se pausada em pleno movimento de pôr um livro na estante. Sua pele era de vidro, e dentro dela, engrenagens giravam com lentidão.
— Ela está... viva?
— Talvez estivesse. Talvez vá estar — disse Saen. — Ou talvez seja só uma memória sólida.
— Isso está me deixando doente.
Rayn segurou a mão de Liora, e ela não reclamou. Era um gesto instintivo — humano, necessário para se lembrar de que ainda estavam ali. Ainda eram reais.
Foi então que encontraram o Velador.
Um homem encapuzado, parado diante de um arco quebrado. Tinha cabelos brancos e um cajado feito de ossos e relógios quebrados. Quando falou, foi como se sua voz ecoasse de trás do tempo.
— Vocês vieram pelo que falta.
— Viemos — respondeu Rayn. — E viemos antes que seja tarde.
— O que falta nem sempre é o que completa. Às vezes, é o que rasga o que resta.
O Velador caminhou até eles. Seus olhos não tinham íris — eram como discos de areia girando.
— Eu guardo a segunda parte da máscara. Mas não posso entregá-la assim. Ela está protegida por uma verdade.
— Qual verdade?
— A que pertence a você, Rayn.
Rayn franziu o cenho.
— Eu já sei o suficiente.
— Ainda não sabe o que você destruiu... antes de nascer.
As palavras atingiram como um trovão seco.
O Velador estendeu o cajado, e o chão tremeu. Um círculo se abriu sob os pés de Rayn, e ele caiu.
— RAYN! — gritou Liora, tentando alcançá-lo, mas era tarde demais.
Quando Rayn abriu os olhos, estava de pé em uma cidade igual a Val'Dereth — mas viva. O céu era dourado. As torres, novas. As pessoas... reais. Andavam apressadas, riam, choravam. Havia crianças correndo, feirantes gritando, casais discutindo.
E no centro da praça, diante do relógio, estava ele mesmo. Mais velho. Com o rosto marcado, um manto negro, e uma expressão de guerra no olhar.
Ao seu lado, uma mulher. De olhos âmbar, cabelo prateado. Familiar. Quase... dolorosamente familiar.
Rayn se aproximou, sem ser visto.
— Está pronto? — ela perguntou ao outro Rayn.
— Não. Mas o tempo não vai esperar.
— Vai mesmo destruir Val'Dereth?
— Se eu não destruir agora... tudo será esquecido.
O Rayn mais velho ergueu a mão, e nela — a máscara completa. Mas algo estava errado. A máscara chorava. Sangue negro escorria dos olhos entalhados nela.
Ele olhou para a cidade e, com um suspiro, a quebrou em pedaços novamente.
A onda que se seguiu foi absurda. A cidade gritou. As torres se desfizeram. As pessoas pararam — congeladas entre segundos. E o relógio explodiu em luz.
Rayn caiu de joelhos.
— Eu... eu destruí isso? Eu fui... o causador?
O Velador apareceu atrás dele.
— Nem todo Guardião protege. Alguns são feitos para lembrar... através do esquecimento.
Rayn tremia.
— Eu destruí Val'Dereth.
— E deixou a parte da máscara escondida aqui... no último lugar onde você foi você.
Rayn olhou para as mãos. Sangue. Memória. E propósito.
A visão se desfez, e ele voltou para o presente, caindo de joelhos na praça agora vazia. Liora correu até ele, ajoelhando-se ao seu lado.
— Rayn?! O que houve?
Ele não conseguia falar. Mas em sua mão, agora, estava o segundo fragmento da máscara.
Saen pegou com cuidado. Olhou para Rayn.
— Você viu algo, não viu?
— Eu vi... quem eu fui. E quem eu precisei ser.
— E quem você é agora?
Rayn olhou para o céu rachado.
— Alguém tentando não cometer os mesmos erros.
Liora segurou o rosto dele com as duas mãos.
— E você não está mais sozinho.
Silêncio.
O relógio no centro da cidade parou completamente. O campo temporal... cessava.
Val'Dereth começava, finalmente, a adormecer em paz.
Horas depois, já fora da influência da cidade, acamparam à beira de um lago que refletia estrelas que ainda não haviam surgido.
Rayn observava os dois fragmentos da máscara: o primeiro, ardente. O segundo, pulsante como um coração.
— Faltam três.
Saen assentiu.
— Um em cada cicatriz do mundo.
— E o que acontece quando tivermos todos?
Rayn não esperava resposta. Mas Liora o surpreendeu.
— A gente vai descobrir. E se for o fim... que seja o nosso fim, não o de todos.
Ele sorriu.
E, pela primeira vez, mesmo sabendo o peso que carregava, sentiu-se digno de caminhar.