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Chapter 11 - Capítulo 11 – Val'Dereth, a Cidade Que Esqueceu o Tempo

"Val'Dereth não se lembra de quando começou, nem sabe se ainda existe. Lá, até a verdade esquece de si mesma."— Fragmento de um viajante desaparecido

Três dias. Foram precisos três dias para alcançar as ruínas de Val'Dereth — embora, para Rayn, parecessem semanas. O tempo entre os passos era fluido, como se cada pisada os levasse para instantes desalinhados. Às vezes, o céu escurecia de repente. Outras, o sol surgia do lado errado.

— Estamos andando... ou deslizando? — perguntou Liora, franzindo o cenho enquanto observava o chão.

— Não importa — murmurou Saen. — Já estamos dentro da influência. A cidade age como uma fenda entre tempos. Val'Dereth é uma fronteira.

— Fronteira entre o quê?

— Entre o que foi... e o que ainda não aconteceu.

Rayn não respondeu. Desde que puseram os pés no caminho de pedra rachada que levava ao portão partido da cidade, sentia a mente vibrar. Lembranças surgiam e sumiam como fumaça. Às vezes, via-se criança novamente, correndo por florestas que não conhecia. Noutras, adulto e... velho, com uma cicatriz no rosto que nunca teve.

Não era só ele.

A cada curva, viam sombras de pessoas que não estavam ali — imagens cintilantes de soldados atravessando os becos, crianças rindo em silêncio, idosos que encaravam o grupo como se os reconhecessem. Aparições, sim — mas carregadas de algo mais. Presença. Elas pareciam lembrar que estavam vivos… enquanto o mundo ao redor esquecia.

Ao cruzarem o antigo portão, Rayn sentiu o peito apertar. A arquitetura era bela, mas gasta — torres tortas que pareciam prestes a cair, pontes suspensas por cipós cristalizados, janelas quebradas de onde saíam sussurros que se desfaziam no ar.

Mas o que mais chamava atenção era o relogião central, no coração da praça. Um colosso de engrenagens flutuantes, suspensas por fios de luz quebrada. Os ponteiros giravam de forma errática — às vezes paravam, às vezes voltavam, às vezes davam voltas completas em um piscar.

— Aquilo é... o centro do campo temporal? — Liora perguntou.

Saen assentiu.

— Tudo em Val'Dereth responde a esse mecanismo. Inclusive nós. Se ficarmos muito tempo aqui dentro...

— Podemos esquecer quem somos? — completou Rayn.

Saen não respondeu. Só observou o ponteiro dar meia volta para trás e parar. O som era seco, mas causava arrepios.

Eles seguiram. O fragmento da máscara que Rayn guardava tremia cada vez mais — como uma bússola que finalmente se alinha.

— Está aqui — sussurrou ele. — O próximo fragmento... está aqui dentro.

— Onde? — Liora apertou a adaga.

— Em algum lugar onde passado e futuro se cruzam. Num eco.

Passaram por becos estreitos, onde folhas secas caiam para cima. Em uma das casas, uma mulher flutuava no ar, imóvel — como se pausada em pleno movimento de pôr um livro na estante. Sua pele era de vidro, e dentro dela, engrenagens giravam com lentidão.

— Ela está... viva?

— Talvez estivesse. Talvez vá estar — disse Saen. — Ou talvez seja só uma memória sólida.

— Isso está me deixando doente.

Rayn segurou a mão de Liora, e ela não reclamou. Era um gesto instintivo — humano, necessário para se lembrar de que ainda estavam ali. Ainda eram reais.

Foi então que encontraram o Velador.

Um homem encapuzado, parado diante de um arco quebrado. Tinha cabelos brancos e um cajado feito de ossos e relógios quebrados. Quando falou, foi como se sua voz ecoasse de trás do tempo.

— Vocês vieram pelo que falta.

— Viemos — respondeu Rayn. — E viemos antes que seja tarde.

— O que falta nem sempre é o que completa. Às vezes, é o que rasga o que resta.

O Velador caminhou até eles. Seus olhos não tinham íris — eram como discos de areia girando.

— Eu guardo a segunda parte da máscara. Mas não posso entregá-la assim. Ela está protegida por uma verdade.

— Qual verdade?

— A que pertence a você, Rayn.

Rayn franziu o cenho.

— Eu já sei o suficiente.

— Ainda não sabe o que você destruiu... antes de nascer.

As palavras atingiram como um trovão seco.

O Velador estendeu o cajado, e o chão tremeu. Um círculo se abriu sob os pés de Rayn, e ele caiu.

— RAYN! — gritou Liora, tentando alcançá-lo, mas era tarde demais.

Quando Rayn abriu os olhos, estava de pé em uma cidade igual a Val'Dereth — mas viva. O céu era dourado. As torres, novas. As pessoas... reais. Andavam apressadas, riam, choravam. Havia crianças correndo, feirantes gritando, casais discutindo.

E no centro da praça, diante do relógio, estava ele mesmo. Mais velho. Com o rosto marcado, um manto negro, e uma expressão de guerra no olhar.

Ao seu lado, uma mulher. De olhos âmbar, cabelo prateado. Familiar. Quase... dolorosamente familiar.

Rayn se aproximou, sem ser visto.

— Está pronto? — ela perguntou ao outro Rayn.

— Não. Mas o tempo não vai esperar.

— Vai mesmo destruir Val'Dereth?

— Se eu não destruir agora... tudo será esquecido.

O Rayn mais velho ergueu a mão, e nela — a máscara completa. Mas algo estava errado. A máscara chorava. Sangue negro escorria dos olhos entalhados nela.

Ele olhou para a cidade e, com um suspiro, a quebrou em pedaços novamente.

A onda que se seguiu foi absurda. A cidade gritou. As torres se desfizeram. As pessoas pararam — congeladas entre segundos. E o relógio explodiu em luz.

Rayn caiu de joelhos.

— Eu... eu destruí isso? Eu fui... o causador?

O Velador apareceu atrás dele.

— Nem todo Guardião protege. Alguns são feitos para lembrar... através do esquecimento.

Rayn tremia.

— Eu destruí Val'Dereth.

— E deixou a parte da máscara escondida aqui... no último lugar onde você foi você.

Rayn olhou para as mãos. Sangue. Memória. E propósito.

A visão se desfez, e ele voltou para o presente, caindo de joelhos na praça agora vazia. Liora correu até ele, ajoelhando-se ao seu lado.

— Rayn?! O que houve?

Ele não conseguia falar. Mas em sua mão, agora, estava o segundo fragmento da máscara.

Saen pegou com cuidado. Olhou para Rayn.

— Você viu algo, não viu?

— Eu vi... quem eu fui. E quem eu precisei ser.

— E quem você é agora?

Rayn olhou para o céu rachado.

— Alguém tentando não cometer os mesmos erros.

Liora segurou o rosto dele com as duas mãos.

— E você não está mais sozinho.

Silêncio.

O relógio no centro da cidade parou completamente. O campo temporal... cessava.

Val'Dereth começava, finalmente, a adormecer em paz.

Horas depois, já fora da influência da cidade, acamparam à beira de um lago que refletia estrelas que ainda não haviam surgido.

Rayn observava os dois fragmentos da máscara: o primeiro, ardente. O segundo, pulsante como um coração.

— Faltam três.

Saen assentiu.

— Um em cada cicatriz do mundo.

— E o que acontece quando tivermos todos?

Rayn não esperava resposta. Mas Liora o surpreendeu.

— A gente vai descobrir. E se for o fim... que seja o nosso fim, não o de todos.

Ele sorriu.

E, pela primeira vez, mesmo sabendo o peso que carregava, sentiu-se digno de caminhar.

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