O Desfiladeiro de Lurean parecia um corte no próprio mundo.
Céu cinzento, ventos sussurrantes, penhascos que mergulhavam em um vazio tão profundo que o som levava segundos para voltar. Era ali que, segundo as últimas palavras de Tahlia, Kael tentaria abrir a Segunda Brecha.
Rayn observava o abismo à sua frente. E não via apenas rochas — via um espelho do que sentia por dentro.
— Você não dormiu — disse Liora, parando ao lado dele.
— Dormir ficou… difícil — respondeu ele, sem tirar os olhos do penhasco.
Ela observou seu rosto por um tempo.
— Vai se culpar pra sempre por ela?
— Se não for por ela… vai ser por alguém depois. — Ele virou o rosto. — E se eu falhar de novo?
Liora ficou em silêncio. Depois, com calma:
— Você vai. E vai seguir mesmo assim. É isso que Guardiões fazem.
Rayn sorriu, amargo.
— Achei que eles não existissem mais.
— Então começa a ser um.
Descer até o fundo do desfiladeiro levou horas. A trilha era estreita, quase oculta por neblina e raízes antigas. Cada passo era como cruzar uma fronteira invisível.
No final, o caminho levou a uma caverna esculpida por mãos humanas — ou algo parecido. Paredes marcadas por símbolos antigos, mais velhos que o idioma de Tahlia.
No centro da sala circular, uma estátua: um Guardião de pedra, com os dois braços erguidos, como se segurasse o céu.
Mas um dos braços estava quebrado.
— Isso é simbólico demais pra ser só ruína — murmurou Liora.
Rayn se aproximou. Havia algo na base da estátua. Um cristal, pulsando em vermelho suave.
Quando tocou, o mundo ao redor sumiu.
De repente, Rayn estava em outro lugar.
Um campo dourado. Céu alaranjado. E diante dele, Kael — mais jovem, sem máscara. Rosto calmo. Tahlia ao seu lado.
Era uma memória.
— Você não entende — dizia Kael à mentora. — O Vazio não é só destruição. É recomeço.
— Você quer apagar tudo o que veio antes — respondeu Tahlia. — Isso não é criar. É negar.
Kael sorriu.
— Talvez o que chamamos de Guardião... precise deixar de existir, pra que algo novo surja.
A cena se desfez. Rayn voltou à caverna, arfando.
— O que foi isso? — Liora correu até ele.
— Uma lembrança. De Kael. Antes da traição.
Mais fundo na caverna, encontraram o que restava de um altar — e um pedestal com inscrições em espiral. Rayn se aproximou. O anel reagiu.
— Isso é um selo. Igual ao que Aedryn criou no fim da Primeira Brecha — disse ele, sem saber de onde vinha o conhecimento.
— E ainda está ativo?
— Só até Kael chegar. — A voz veio do fundo.
Ambos se viraram. Mas não era Kael.
Era uma mulher encapuzada, com o símbolo dos antigos Guardiões bordado no peito.
Ela retirou o capuz. Tinha cabelos curtos, prateados como os de Tahlia — e olhos dourados, como o crepúsculo.
— Meu nome é Saen — disse. — E eu vim impedir que vocês destruam o que resta da Ordem.
— Você é uma Guardiã? — Rayn perguntou, desconfiado.
— Fui. Até decidir que seguir as velhas regras era o caminho mais rápido pra repetirmos o mesmo fim.
Liora puxou a adaga.
— Está do lado de Kael?
— Não. — Saen deu um passo à frente. — Mas também não estou do seu. Ainda não.
Rayn não entendeu.
— Por que está aqui, então?
Ela apontou para o pedestal.
— Porque aquele selo não vai aguentar. E se vocês não souberem o que fazer... o Vazio vai engolir tudo. E dessa vez, não haverá outra chance.
Saen os levou até uma sala secreta, escondida atrás de um espelho quebrado. Dentro, estavam mapas, memórias armazenadas em cristais, e o mais impressionante: uma carta escrita por Tahlia — como se já soubesse o que aconteceria.
Rayn leu em silêncio.
"Se você está lendo isso, Rayn, então falhei. Mas você ainda não.A Segunda Brecha é mais do que uma abertura para o Vazio.É o reflexo do que você escolher ser: ruína ou ponte.A escolha virá. E será sua.Lembre-se: Guardiões não salvam mundos. Eles salvam esperanças."
Rayn fechou os olhos. E decidiu.
— Vamos até a fronteira. Selar o que for preciso. Proteger o que restar.
Saen cruzou os braços.
— Vai precisar de mais do que palavras.
Ele ergueu o anel.
— Então que venha o fogo.