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CAPÍTULO — A ÚLTIMA DANÇA DO INVERNO
O salão reluzia sob a luz âmbar dos candelabros pendentes, que dançavam junto à música como se o tempo houvesse esquecido a guerra. Os vitrais do Palácio dos Ursos filtravam o luar em tons dourados, e o chão de mármore refletia os passos como se o próprio destino os imitasse.
Kátyra girava nos braços de Tharion.
Ela usava azul profundo, cravejado de minúsculas pedras claras que cintilavam como estrelas presas ao tecido. Os cabelos prateados, soltos em ondas, pareciam faíscas de gelo em movimento. Tharion, trajado com um manto negro de lobo, parecia menos guerreiro e mais um segredo antigo, guardado entre os pilares do Norte.
Ponto de vista de Tharion.
"O sorriso dela..." — sua voz ecoava na canção, num tom grave e contido —
"...move o mundo, mesmo que o mundo insista em desabar. Há uma paz no seu riso que me faz esquecer que amanhã podemos sangrar. Mas antes da dança, antes da música... houve dor. Houve guerra."
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Biblioteca de Cristal — Três dias antes
O silêncio era espesso como o véu do luto.
Livros antigos jaziam abertos sobre a grande mesa de mármore. Mapas, profecias esquecidas, registros dos Darxas, códigos dos antigos Guardiões — tudo lido, relido, debatido até o esgotamento. O grupo reunido ali não era o mesmo de semanas atrás. A alegria havia partido com os primeiros mortos.
Aelys mordia os lábios, tentando não chorar. Orren olhava fixamente para uma rachadura na parede como se ela fosse uma resposta. Kátyra... estava sentada, envolta em mantos. A princesa guerreira parecia uma sombra de si. Os olhos fundos, as mãos trêmulas. Havia nela a fúria adormecida de uma tempestade contida demais.
"Se ao menos soubéssemos onde ele está...", sussurrou ela, a voz fraca, rachada.
Ninguém respondeu.
Tharion estava encostado à janela. Olhava o céu. A esperança parecia ridícula naquele momento — como um barco furado no meio de um mar de sombras. E, mesmo assim, ele sorriu. Um sorriso discreto, torto, um último esforço para manter todos de pé.
"Vamos achá-lo", disse.
A voz soou firme — mas apenas por fora.
Ele se afastou dos outros, atravessou o corredor de vitrais, e quando ninguém mais via... abriu a palma da mão.
Ali, sobre a pele marcada de cicatrizes, repousava o Sinete dos Guardiões.
A marca viva pulsava como um coração antigo prestes a despertar.
Tharion fechou os olhos.
A dança ainda não havia começado.
Mas a dor... ah, essa já havia tomado sua primeira nota.
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---Dois dias atrás...
Entre Ecos e Erros Antigos
Crepúsculo no Vale de Elrûr. A floresta escurecia com uma pressa profana. O vento sussurrava nomes esquecidos entre as folhas secas, e o céu parecia mais perto do chão do que nunca.
Tharion se afastou do grupo. O Sinete pesava em sua mão como se queimasse por dentro.
Ele andou até onde os olhos não o viam mais.
E ali... eles o esperavam.
Caleum.
De pé sobre uma raiz ancestral, envolto em um manto cinzento como a aurora antes da tempestade.
Lysar.
A seu lado, como um espelho turvo, os olhos marejados pela eternidade.
Tharion parou.
"Vieram me julgar agora?" — disse ele, seco, embora sua garganta ardesse.
Caleum desceu um degrau da raiz, como se a terra inclinasse para ele.
"Não... já te julguei. Estou apenas decepcionado."
Tharion mordeu os lábios. O sangue subiu-lhe às faces.
"Diga o que quer dizer, velho. Ou vá embora com seus enigmas e silêncios."
"Você ainda é o mesmo?" — Caleum perguntou, sem levantar a voz.
E aquela frase cortou mais fundo que qualquer espada.
"Aquele mesmo garoto que recusou o trono do Sul para não abandoná-la naquela caverna? Aquele por quem eu me curvei, Tharion ?"
Tharion deu um passo à frente, o punho cerrado.
"Você quer que eu faça o quê, Caleum?" — a voz rasgou a floresta.
"O que você quer de mim? O que mais você quer de mim, HOULER?!"
O eco se espalhou.
Pássaros voaram em debandada.
Lysar abaixou os olhos.
Caleum caminhou lentamente até ele. A respiração de Tharion era fogo. Mas o outro não se intimidou. Quando falou, foi com calma cirúrgica:
"Não quero nada de você. Mas ela precisa de você inteiro. E você está quebrado. Se entrar naquele templo assim, Ishelan não vai precisar levantar a mão. Você mesmo vai se destruir."
Tharion tremeu.
Não de raiva.
Mas porque sabia que era verdade.
"Então me diga como parar. Como suportar tudo isso sem desmoronar."
Lysar levantou os olhos.
"Lembra da primeira vez que a viu?" — ela perguntou.
Tharion assentiu com a cabeça, devagar.
"Então volte a ser aquele homem."
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Sensacional, Amanda! Essa virada no deserto dá um tom quase bíblico, uma provação íntima e mística que casa perfeitamente com o estilo "espelhado" da narrativa. Vamos nessa:
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Areias da Verdade
Estalido seco. Um piscar de olhos.
E o mundo virou pó e calor.
Tharion tropeçou para trás, os pés afundando em areia escaldante. O céu era um teto de fogo branco e, ao redor, não havia árvore, nem som, nem sombra. Só ele — e Caleum, inalterado, como se o deserto curvasse o calor em reverência.
"Por que me trouxe aqui?" — perguntou Tharion, suando, ofegante.
"Porque aqui ninguém grita. Aqui se escuta," respondeu Caleum, girando algo entre os dedos. Um pequeno pedaço de metal — o Sinete? Não. Um reflexo, uma ilusão talvez.
"Me escute, Tharion : onde está a relíquia?"
Tharion piscou, confuso.
"A chave... da Biblioteca de Cristal?"
"Sim. Onde ela está?"
Tharion levou a mão ao pescoço. Ao cinto. Ao bolso oculto. Nada. Vasculhou com os olhos, a respiração descompassada.
"Eu... não a vejo há dias."
"Exato."
"Mas pensei que fosse o erudito quem a carregava," murmurou Tharion. "Achei que Lysar..."
Caleum deu uma gargalhada breve. Seca. Como trovão distante.
"Então me diga, Semente — se você não tem a chave... como é que você entra?"
Silêncio.
O deserto soprou calor como um aviso.
Tharion olhou em volta, o suor escorrendo pelas têmporas.
"Eu... não sei," disse por fim. "Nunca pensei nisso. Eu só... fui. A porta abriu."
Caleum sorriu. Não um sorriso gentil. Era o sorriso de quem sabia de algo há muito tempo e se cansou de esperar que o outro compreendesse.
"Então vai descobrir."
E desapareceu.
Sumiu como poeira ao vento, sem som, sem rastro, sem resposta.
Tharion ficou ali, só.
Com o céu pulsando sobre sua cabeça.
Com uma pergunta martelando o coração:
E se a chave sempre tivesse sido ele?
Perfeito. Isso fica ainda mais épico. Um desafio físico e espiritual verdadeiro, uma provação digna de Guardião — ou de alguém destinado a algo além.
Então vamos continuar com Tharion no deserto real, buscando o caminho para a Biblioteca de Cristal sem a chave.
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A Porta Sem Chave
O sol queimava a pele como se o céu estivesse colado ao chão.
Tharion seguiu adiante, os passos pesados, os lábios rachados, a capa puída.
Estava sozinho.
Nem Caleum. Nem sombra.
Apenas ele, sua dúvida... e o silêncio.
Mas, ao fim do dia, quando o corpo quase cedeu, quando a mente já delirava, ele a viu.
Uma muralha branca surgia no horizonte.
Alta como uma promessa.
Luminosa como se feita de gelo e estrelas.
Tharion correu.
Ou tentou correr.
As pernas cederam quando chegou diante do portão: duas colunas de mármore pulsante, entalhadas com inscrições antigas — nomes de reis esquecidos, de magos caídos, de linhagens extintas.
E no centro, o receptáculo vazio.
O local onde a relíquia deveria encaixar.
Tharion tocou a pedra.
Gelada como a morte.
"Não tenho a chave," murmurou, a testa colada à porta. "Então me diga... por que vim até aqui?"
O vento soprou.
Fraco.
Mas trouxe consigo uma memória.
"Você mesmo vai se destruir."
"Então vai descobrir."
Fechou os olhos.
Deixou que o calor saísse do corpo.
Que o orgulho murchasse.
Que a raiva morresse.
E ali, ajoelhado diante do portão, ele murmurou:
"Se eu sou a chave... então que o que há em mim seja suficiente."
Colocou a mão sobre o próprio peito.
E o Sinete queimou.
Luz vazou pelos dedos.
Pulsante. Antiga. Azul como o céu antes da guerra.
A porta tremeu.
E então... se abriu.
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Biblioteca de Cristal — Interior do Véu
O portão não se abriu.
Ele se rasgou.
Como se o próprio tecido do mundo não pudesse mais conter o que se aproximava.
O ar ondulou, e uma fissura de luz cortou o chão de cristal.
Os livros flutuantes estremeceram. Os globos giraram ao contrário.
E então ele surgiu — não caminhando, mas atravessando.
Tharion.
Não era mais o mesmo.
A areia do deserto ainda colava à pele, mas seus olhos... ah, os olhos.
Carregavam a sombra de quem viu demais, e a luz de quem não recuou.
No salão sagrado da Biblioteca de Cristal, o caos se fazia cena.
Kátyra, descontrolada, tentava socar o peito de Caleum, sua voz ferida como lâmina:
"O que você fez com ele? Você o matou? Ele não ia aguentar aquilo sozinho!"
Caleum suportava os golpes como quem observa uma prece antiga, um pouco triste, um pouco cansado.
"Se ele fosse apenas um homem… não teria voltado."
Lysar segurava a princesa, tentando impedi-la de conjurar algo terrível.
Orren embalava Lyora, tentando acalmar o choro da bebê com canções que nem ele lembrava de onde vinham.
Aelys sorria — um sorriso que não era desprezo, mas certeza.
E então… o véu rasgou.
Todos viraram ao mesmo tempo.
O ar ficou denso, e um arrepio correu pelos ossos.
Tharion pisou sobre o mármore com os pés nus.
A túnica em farrapos.
O Sinete gravado em sua pele, pulsando.
Kátyra parou de lutar.
Lysar engasgou um soluço de incredulidade.
Aelys desceu do livro flutuante como se assistisse a uma lenda se cumprir.
Lyora parou de chorar.
E Caleum, sem virar-se, apenas disse:
"Ele atravessou."
Tharion olhou em volta, como se enxergasse tudo e todos com olhos que agora viam mais do que o mundo mostrava.
"Vocês me deixaram no fim do mundo…" — disse ele, a voz baixa, rouca.
"…e lá encontrei o começo."
Kátyra caiu de joelhos, as lágrimas secando no rosto.
"Tharion…"
Ele caminhou até ela, sem pressa, sem peso.
Ajoelhou-se, e pela primeira vez…
a tocou com reverência, como quem reencontra o que salvou a alma.
"Eu voltei por você."