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Chapter 71 - Vozes no Silêncio.

Capítulo – Vozes no Silêncio

O salão de guerra foi tomado por gritos e passos apressados. O desaparecimento das crianças ecoava como um tambor de desespero nos corredores do Palácio dos Ursos. Dimitry estava de pé à cabeceira da mesa, os olhos faiscando, o punho cerrado sobre um mapa marcado com círculos e riscos de carvão.

— Nenhum portão foi aberto. Nenhum corredor foi forçado. — rosnou um dos generais.

— Eles simplesmente… sumiram — completou outro, com a voz embargada.

— Isso não foi um ataque. — disse Dimitry, tenso. — Foi uma mensagem.

Ele fitou o símbolo negro deixado no chão do salão — um círculo entrelaçado por raízes secas, símbolo dos Ataxas mais antigos. As mãos dele tremiam, mas sua voz era firme:

— Convoco um Conselho de Emergência. Que todas as Casas se curvem diante do dever. E que ninguém saia vivo se ousar mentir hoje.

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Enquanto isso… nos jardins elevados do palácio

Cora conduzia Titos pela mão, tentando distraí-lo da tensão que envenenava os corredores.

— Vamos procurar os peixes azuis no lago de cristal? — disse ela, com um sorriso caloroso.

— Quero mostrar um desenho pra você, vovó! — respondeu ele, correndo adiante.

Cora se abaixou para pegar uma flor caída, e quando se ergueu...

— Titos?

Silêncio.

— Titos?!

Ela correu pelo caminho onde ele estava… mas ele havia sumido. Nada. Nem pegadas. Nem o cheiro de sua presença. Apenas o ar parado e um vazio inexplicável.

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Dentro da biblioteca, a notícia chega a Kátyra como uma lâmina.

Ela cambaleia, o coração em disparada.

— Não... não de novo… — sussurra, o desespero abrindo rachaduras em sua postura firme.

Cora, pálida, retorna tentando conter o choro.

— Eu só me distraí por um segundo. Um segundo...

Tharion escuta, e parte em disparada pelo corredor, desesperado. Atravessa salões, jardins, corredores — até chegar a um pátio escondido.

Ali, entre sombras e estátuas antigas, ele os vê.

Crianças.

Rindo baixinho. Brincando. Mas com os rostos vazios de expressão. E todos, todos, viram-se lentamente para ele.

Dedos nos lábios.

Silêncio.

Tharion recua, a respiração presa na garganta.

— O que é isso…?

Uma das crianças estende a mão, apontando para trás dele.

Lyzar está lá.

Olhos arregalados.

— Elas me chamam, … eu escuto elas nos meus sonhos.

Antes que Tharion possa se mover, uma figura emerge da sombra.

O Erudito.

— Não aqui. Venham comigo. Agora.

---Um som metálico ... Um portal se abre...

Logo eles se vêem...

Nas Montanhas do Sul – Terra dos Nefilins Perdidos.

A viagem é feita em segundos, mas o mundo ao redor muda completamente. Ruínas esquecidas tomam a paisagem. Torres partidas, muralhas de pedra branca coberta de musgo antigo. Um silêncio reverente envolve tudo.

Tharion segura Lyzar pela mão.

— Onde estamos?

O Erudito respira fundo.

— Onde tudo começou. Onde os caídos tocaram o céu pela última vez.

Dos escombros, uma figura surge. Alta, de cabelos prateados e olhos como tempestade noturna.

Caleum.

— Então… o sangue voltou para onde pertence — diz ele, olhando para Lyzar.

— E com ele… o fim ou o renascimento do que somos.

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Interior da Caverna Branca – Nas Montanhas do Sul, Terra dos Nefilins Perdidos

O caminho era estreito, esculpido na rocha viva. O Erudito caminhava à frente, a luz de seu cajado oscilando como uma estrela em chamas. Tharion vinha logo atrás, inquieto, com Lyzar à sua esquerda e Caleum em silêncio à retaguarda.

De repente, o ar mudou.

A caverna se abriu em um salão vasto, onde a pedra parecia pulsar com ecos antigos. No centro, uma pira apagada. Ao redor, sete tronos de ossos e ouro incandescente.

O Erudito se virou e tocou o chão com a ponta do cajado. A pira acendeu-se — mas não com fogo comum. Era um fogo da memória.

— Aqui é onde tudo começou — disse ele. — E onde tudo terminou.

FLASHBACK : O Último Julgamento

As chamas mostraram figuras encapuzadas — os Holens originais — julgando um ser de asas negras e olhos de trovão. A terra treme. Um vulcão ruge ao fundo.

A voz do Erudito ecoa:

"Quando a balança se quebrou, os Holens fizeram o que sabiam fazer: julgaram os deuses como se fossem homens."

FLASHBACK : O Incêndio do Reino

O castelo ardia em chamas douradas. Crianças choravam. Uma mulher de cabelos vermelhos corria com um bebê no colo — os olhos dela eram como os de Tharion.

— Minha mãe… — sussurra ele.

"Ela era uma das Damas do Véu Flamejante. Escondeu você nos braços do mundo."

FLASHBACK : A Traição de um Holen

Um dos juízes se curva a uma sombra sussurrante. O fogo nele vira cinza. É o primeiro Holen a cair — o fogo da justiça se converte em fome de poder.

Lyzar observa, encolhida.

— Ele foi o primeiro a corromper o Julgamento. O primeiro a desejar o fogo só para si — diz Caleum. — E por causa dele… nós caímos.

FLASHBACK : O Destino de Tharion

O bebê é colocado entre as raízes de uma árvore de cinzas vivente. Uma criatura dracônica curva a cabeça diante dele. A árvore queima, mas não morre. Ela o envolve como um berço.

O fogo se apaga.

De volta ao presente, todos estão em silêncio.

O Erudito fala, agora com a voz pesada:

— Você não nasceu para reinar, Tharion.

Você nasceu para julgar os que se dizem deuses.

Tharion dá um passo à frente. As chamas do salão se recolhem como se temessem sua presença.

— E se eu me recusar?

Caleum se aproxima, sério:

— Então o mundo escolherá outro.

E esse outro , não terá misericórdia.

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Interior da Caverna Branca – As Chamas já se Acalmaram

O silêncio pesa após os flashbacks. A pira arde em brasa baixa, como se esperasse por uma decisão. Tharion encara Caleum, o olhar endurecido pelas revelações. Ao lado, Lyzar se mantém em silêncio, olhando para o irmão com uma mistura de lealdade e dor.

Caleum se aproxima, os olhos cinzentos fixos nos de Tharion.

— A linhagem foi corrompida, destruída, esquecida... Mas não você.

Você é o último portador do Fogo que Julga. O Rei do Sul. Por direito e por destino.

Tharion desvia o olhar, desconfortável.

— Isso é passado. Eu sou um guerreiro, não um rei. Não preciso de trono. Preciso de respostas. Das crianças. De Titos.

Caleum suspira, e seus traços endurecem.

— Você quer salvar as crianças?

— Quero.

— Então ouça com atenção, Tharion dos Holens.

Ele estende a mão e o fogo responde — uma imagem se forma: as crianças desaparecidas, incluindo Titos, presas em um plano sombrio, como vultos flutuando em véus de fumaça. As crianças o veem e choram silenciosamente, mas suas bocas permanecem seladas.

— Elas estão entre os véus, presas entre mundos, levadas por Ishelan, mas ainda não perdidas. Existe uma porta. Uma única passagem. E só o verdadeiro rei pode atravessá-la sem ser consumido.

Tharion dá um passo à frente, o rosto tenso de esperança.

— Então me leve até lá.

Mas Caleum ergue a mão, firme.

— Há um preço.

O fogo se recolhe. Tudo escurece, exceto os olhos de Caleum.

— Você deve renunciar a Kátyra.

Não pode mais vê-la, tocá-la, amá-la.

Ela pertence ao norte. Você... ao sul.

Tharion encara Caleum como se o mundo ruísse ao redor. A mão dele treme ao lembrar do rosto de Kátyra, das promessas sussurradas sob as estrelas, do filho nos braços dela.

— Isso é um julgamento?

— Não — responde Caleum com voz baixa. — É o seu chamado.

Lyzar dá um passo à frente, suavemente:

— Se ele aceitar, não poderá mais retornar à superfície como antes. Será um soberano do véu, um guardião entre mundos.

Tharion fecha os olhos, lutando. Então, encara Caleum com a raiva de quem sabe que está sendo arrancado do que ama.

— E se eu recusar?

— As crianças se perderão.

Inclusive Titos.

Silêncio.

A respiração de Tharion sai pesada, o peito subindo e descendo. O fogo ao redor pulsa em compasso com seu coração. Ele encara a escuridão adiante, onde o caminho dos reis o aguarda.

A escuridão se fecha ao redor como uma prova final. Caleum fita Tharion, aguardando sua resposta, firme como a própria rocha das montanhas.

— E então? — diz Caleum. — Você escolhe seu amor... ou salva as crianças?

A chama estala, como se prendesse a respiração do mundo.

Mas Tharion não hesita.

Ele dá um passo à frente, os olhos faiscando com uma fúria tranquila, uma convicção que ecoa por gerações esquecidas.

— Ela me amou quando eu não era ninguém.

Quando o meu nome não valia nada além da poeira nos sapatos dos nobres.

Ela acreditou em mim quando até minha sombra duvidava.

Quando eu era menos que os cães de guerra, ela se deitou ao meu lado.

Ela não deixou que o trono dela nos separasse… e eu também não deixarei.

Um silêncio absoluto cai. Até o fogo parece ouvir.

Caleum franze os olhos, cauteloso.

— E as crianças, Tharion?

— Eu não desistirei delas. Nunca.

Nem por um trono. Nem por um deus.

Se tiver que queimar o mundo, eu trago Titos e cada uma delas de volta.

Caleum o encara por longos segundos.

E então... se curva.

— Você passou no julgamento.

O fogo não busca servos. Ele escolhe reis que têm coração.

Lyzar se ajoelha com a mão no peito.

— Sou seu Saber, senhor.

O Erudito dá um passo à frente, solenemente.

— Sou seu Castler. Sua ponte entre os mundos.

E o mundo verá o retorno do Rei Ardente.

Tharion, atordoado por um instante, sente o calor ao fundo da caverna mudar. Ele se vira.

E vê.

Duas silhuetas à beira da luz — os pais que ele jamais conheceu de verdade, sorrindo. A mãe toca os lábios, e o pai ergue o punho em sinal de orgulho. Eles não dizem nada. Mas dizem tudo.

Tharion prende o fôlego.

O Erudito então o toca no ombro.

— Está na hora, majestade.

E num lampejo de luz, eles desaparecem — transportados de volta à Biblioteca de Cristal, onde o destino ainda os espera.

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