Cherreads

Chapter 56 - O Peso que se Herdou.

Capítulo- O Peso do Que Se Herdou

A noite repousava densa sobre a estrada quando o grupo chegou à quarta mansão. Um solar imponente, de pedra azulada e colunas esculpidas com escamas de dragão. Pertença de um velho lorde do Clã de Cristal, aliado de Adam desde os primeiros tempos da Guerra de Marfim. Ali, foram recebidos com mais formalidade do que afeto. O anfitrião não disfarçava o desprezo pelos Bardaxas.

Na ala leste, os convidados repousavam em quartos luxuosos. Mas nas cômodas velhas dos fundos da propriedade, entre mantas gastas e odor de mofo, os Bardaxas do grupo se apertavam em colchões rentes ao chão.

Tharion viu. Ouviu. Sentiu.

Ao cair da madrugada, os lamentos abafados de dor e cansaço escapavam pelas frestas. Tosses persistentes. Um choro contido. Alguém pedindo mais pomada para as feridas.

Tharion levantou da cama, atravessou o corredor como uma sombra, e viu tudo com os próprios olhos. Voltou com o sangue em brasa.

Empurrou a porta do quarto de Kátyra sem cerimônia.

— Eles estão dormindo no chão. Com ratos.

Kátyra piscou, confusa.

— Do que você está falando?

— Dos Bardaxas. Os que te seguiram. Os que vêem você como esperança. Eles estão entre panos rasgados enquanto você dorme cercada de almofadas de veludo.

Ela se levanta, o rosto endurecendo:

— Eu não sabia.

— Não sabia ou não quis saber? Você ainda está presa à torre de onde veio, Kátyra. Você enxerga o mundo através do vitral da sua linhagem.

Ela tenta responder, mas ele está tomado por fúria:

— Me diz o nome da cozinheira que te alimenta. Do rapaz que penteia seus cabelos. Do ancião que varre o salão antes das festas. Só UM nome, Kátyra!

Silêncio.

— Você fala de mudança, mas nunca pisou com os pés onde essas pessoas rastejam. Você carrega títulos, mas não nomes. E sabe o que mais? Talvez você não seja tão diferente de Erizy assim.

Ela empalidece, como se tivesse levado um tapa.

— Retire o que disse.

— Não. Porque se você continuar fechando os olhos, se continuar empurrando a verdade pra debaixo do trono... o fim vai ser o mesmo. Você vai queimar com a mesma chama.

A porta bate. Ele some no corredor.

E no instante seguinte, o som de risos abafados e gemidos ecoa pelo teto de madeira. Tharion para, o cenho franzido. Vem do quarto de Aelys. Ele retorna como um raio.

Empurra a porta, só para ouvir o barulho cessar. Dentro, vês vestes jogadas, duas taças no chão. Mas o quarto está vazio.

— Claro... — ele murmura, com veneno na voz. — Enquanto os Bardaxas sangram, você se diverte com Orren?

Ele soca a parede, parte um azulejo. Depois vai embora sem esperar explicação.

---

Naquela mesma noite, longe dos olhos alheios, Kátyra escreve:

Pai,

Hoje, pela primeira vez, escrevo não como princesa, nem como herdeira. Escrevo como filha, como mulher... como alguém que se perdeu dentro de si.

O senhor estava certo sobre tudo. Sobre o fardo da coroa, sobre os perigos de confiar no coração e, principalmente, sobre o que o mundo exige de nós.

Chegou o dia em que desejo ser chicoteada por mim mesma.

O que fiz com os Bardaxas — o que deixei acontecer — me persegue. Errei. Permiti que eles acreditassem que eram apenas sombras entre os castelos, e quando a verdade me encarou, desviei os olhos.

Tharion... ele me viu nua não só no corpo, mas na alma. Me viu hesitar, falhar, perder o controle. E mesmo assim me seguiu. Mesmo assim ficou.

Pai... me envergonho. De mim, das minhas decisões, e do que permiti que me fizessem.

Talvez nunca mereça seu perdão. Mas precisava escrever. Antes que o peso me afunde de vez.

Com dor, Kátyra

---

Dois dias depois, em resposta, chega uma carta selada em vermelho:

Minha filha,

Quando recebi sua carta, precisei lê-la três vezes. E ainda assim, meu coração entendeu mais do que meus olhos.

Você me fala de vergonha. Mas tudo o que senti foi orgulho. Não pelo sofrimento que você carrega — isso me fere mais do que qualquer espada. Mas porque, mesmo sangrando por dentro, você escreve. Você sente. Você pensa no povo.

Sabe o que vi nas suas palavras? A rainha que você já é.

Enviei com esta carta três presentes:

A escritura das Terras Baixas, agora em nome de Tharion. Para que ele — ao seu lado — construa algo novo, algo justo.

Uma relíquia da nossa linhagem, que abrirá as portas da Biblioteca de Cristal em qualquer lugar do mundo. Que o conhecimento nunca esteja longe de você.

E um decreto real, selado com meu sangue, garantindo um salário digno e regular aos Bardaxas que vivem e trabalham sob os Guardiões e Jeangles. Que eles não sejam mais sombras.

Talvez os mais velhos entre eles nunca entendam o que está por vir. Talvez se percam antes que o progresso os alcance. Mas você, minha filha, os enxergou.

E quanto ao Tharion... não deixe barato.

Com orgulho eterno , Dimitry.

More Chapters