Cherreads

Chapter 52 - Os Menos Favorecidos.

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Capítulo –Os menos favorecidos .

O grupo avançava entre trilhas estreitas cobertas por um manto de folhas secas e o cheiro pungente de podridão. A segunda vila estava à vista — ou ao que restava dela. Do alto da colina, Kátyra apertou os olhos: os telhados de palha estavam cobertos por uma camada escura, quase oleosa, e os campos... os campos estavam mortos. Flores negras, maiores que as anteriores, cobriam a plantação como se tivessem engolido a terra.

Tharion segurou a respiração.

— Essas coisas estão se espalhando como praga divina.

— Ou maldição profana — murmurou Aelys, estremecendo ao ver uma vaca deitada com espuma escura na boca.

Orren se adiantou, puxando seu grimório.

— Não são plantas comuns. Nem naturais. Há magia nas raízes.

Kátyra caminhou até o limite do campo. Quando seus pés tocaram o solo, um arrepio lhe subiu pela espinha. Ela se abaixou e tocou a terra — fria como pedra.

Na mesma hora, ouviu. Sussurros. Fracos, longínquos. Como se a terra gritasse.

— Estão matando a terra por dentro... — murmurou.

— Vocês também ouviram? — perguntou uma voz masculina, grave, de trás deles.

Todos se viraram. Da névoa que subia dos campos, surgiram dois vultos. Um homem e uma mulher, ambos vestidos com mantos de couro e musgo, adornados com penas negras e cristais azul-escuros. Tinham a mesma postura felina e um magnetismo inquietante.

— Desculpem a entrada — disse o homem com um leve sorriso. — Vocês não são os primeiros a seguir as pegadas da praga. Mas talvez sejam os primeiros com chance real de sobreviver.

Ele se aproximou de Kátyra, curvando-se levemente com uma reverência que não era submissa.

— Caelum Mavros, leitor das raízes e rastreador de murmúrios. E esta é minha irmã, Lysar.

Lysar cruzou os braços, olhando o grupo com olhos âmbar que varriam tudo como lâminas.

— E vocês são os famosos sobreviventes da Ilusão da Hospedaria... impressionante.

Tharion deu um passo à frente, desconfiado.

— Como sabem disso?

— Sabemos muitas coisas, Tharion dos Sangues Cruzados — ela respondeu com um meio sorriso.

Kátyra não disse nada. Mas Caelum já a olhava como se a conhecesse de outro tempo.

— Você ouviu os sussurros da terra. É raro. Poucos ainda ouvem.

Ele se aproximou um pouco mais. — Chama antiga... o que mais você sonha quando toca as raízes?

Antes que Kátyra respondesse, Tharion se colocou discretamente entre eles, em silêncio.

Lysar soltou uma risada baixa.

— Vai ser interessante viajar com vocês...

---A beira da fogueira.

A fogueira crepitava, lançando sombras dançantes sobre os rostos cansados do grupo. O ar da vila abandonada estava pesado, mas os campos haviam sido deixados para trás — por enquanto. Orren estendeu sobre uma pedra um pergaminho recém-adquirido: um mapa detalhado do Norte, com marcações douradas nos domínios ainda leais ao Reino.

— Encontramos isso com um velho cartógrafo em Marlendell, antes da primeira praga — explicou, abrindo um sorriso contido. — Marcamos todas as casas nobres que ainda juraram fidelidade a Dimitry. Aqui, aqui e aqui — apontou com o dedo — poderíamos pernoitar com segurança. Melhor que arriscar acampamentos abertos.

Aelys tirou de sua bolsa um estojo de couro com frascos de essência, sementes de proteção e um novo grimório com páginas em branco encantadas.

— Trocamos boa parte dos nossos suprimentos por esses. Servem para afastar maldições de contato... se forem mesmo venenos encantados, pode nos dar tempo.

— Parece um bom plano — comentou Kátyra, ainda observando a fogueira, os pensamentos longe. Ela não conseguia esquecer os olhos de Caelum. Nem os sussurros que continuavam, de leve, cada vez que tocava o solo.

Os irmãos Mavros estavam sentados à parte, mais adiante, sob uma árvore retorcida, conversando baixo em um idioma que nem Aelys reconhecia.

Quando Lysar percebeu os olhares, levantou-se e veio até o grupo.

— Vocês não seguem pelo mesmo caminho que nós — disse, sem rodeios. — Nossos passos vão para o sul. Há algo sob os lagos escuros que precisamos investigar antes que se espalhe.

Caelum caminhou atrás da irmã, mas lançou um último olhar para Kátyra.

— Nos encontraremos de novo, Chama. Ainda há raízes que precisam da sua voz.

E então, desapareceram na escuridão com a mesma naturalidade com que haviam surgido.

Tharion não disse nada por longos instantes, apenas olhava para o vazio. Mas Aelys percebeu o maxilar cerrado.

— Tudo certo com você? — ela perguntou.

— Só lembrando quem somos — ele respondeu, se levantando. — E quem paga o preço de tudo isso.

Kátyra o observou se afastar. Aquilo não era ciúme. Era outra coisa. Um peso mais antigo que os sussurros da terra.

-Sangue nas Correntes

A paisagem mudava conforme seguiam em direção ao leste. Florestas úmidas davam lugar a campos secos e, por fim, a pequenas vilas escondidas entre vales cinzentos — áreas esquecidas pelos nobres e pelo Conselho. Ali, Tharion tomava a dianteira. Não guiado por mapas, mas pela memória.

No terceiro dia, pararam em uma aldeia sem nome. Cabanas de pedra, crianças magras com olhos desconfiados, marcas no chão como garras fundas. Era ali. A antiga zona de confinamento dos Bardaxas.

Kátyra, montada, olhou em volta com estranheza.

— Nunca ouvi falar deste lugar.

— Ninguém ouviu. Foi feito pra ninguém ouvir — respondeu Tharion, desmontando.

Ele passou por ela sem olhá-la.

— Desça. É hora de ver o que acontece quando seu sangue nasce errado.

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Os Menos favorecidos.

O som das correntes ecoava mesmo na ausência de grilhões. Os olhos dos moradores da vila Bardaxa eram fundos, não só de fome ou cansaço, mas de algo mais antigo: silêncio aprendido à força.

Tharion guiou o grupo por entre ruínas e fogueiras baixas, onde sombras se mexiam, desconfiadas. Um menino passou correndo com um galho na mão, o olhar fugindo de Kátyra como se ela fosse feita de ferro quente.

— Eles acham que sou uma inimiga? — perguntou ela, baixo.

Tharion parou, encarando uma parede coberta por marcas de unhos.

— Não acham. Sabem. Você carrega a coroa que silenciou nossas vozes.

Ele se virou. — Aqui, os jeangles são vigias. Os Darxas escolhem os piores. E os Bardaxas... bom, somos os que limpam a sujeira que os outros não querem ver.

— E por que você ainda luta por esse Reino? — ela rebateu, ferida.

Ele respirou fundo.

— Porque o Reino não é a coroa. É o povo. E alguns deles ainda merecem ser salvos.

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Mais tarde naquele dia, no primeiro ponto de descanso

A transição para a mansão foi brutal.

Os portões se abriram com estandartes dourados e brasões antigos. A propriedade, de arquitetura alta e paredes adornadas por hera púrpura, pertencia a Lorde Elion Varcrest, antigo aliado de Adam, um homem de fala mansa e olhos que já viram guerras demais.

Serviçais se apressaram em recolher as montarias. Vinhos foram oferecidos. Salas luxuosas, camas quentes. Mas Tharion recusou-se a tirar a capa.

Kátyra o seguiu até um dos corredores internos. Lá, entre colunas de mármore e tapeçarias, a discussão explodiu.

— Por que está com essa cara, agora? — ela exigiu. — Não somos todos culpados por essa dor, Tharion. Eu não sabia da existência daquela vila!

— Pois esse é o problema — ele rebateu, virando-se para ela com os olhos em brasa. — Você não sabia. Viveu cercada de luxo, de professores, de banhos em águas encantadas... enquanto metade do seu povo apodrecia em silêncio.

— E o que queria que eu fizesse? Eu era uma criança! — ela disse, ofendida.

— E agora é uma mulher. Uma princesa. Então abra os olhos — ele sussurrou, com a voz baixa e cortante. — Ou será apenas mais uma rainha cega governando sobre cinzas.

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– Flashback de Aelys

Enquanto isso, Aelys estava sentada nos jardins da mansão, olhando as flores de cristal noturno que se abriam sob a lua. Um aroma doce a levou de volta. Para outra vida.

Ela era uma Jeangle, filha de escribas humildes. Morava num reduto no interior, onde o trabalho era constante e o sono, luxo. Um dia, feriu-se na biblioteca real — um tombo bobo — e foi socorrida por um jovem aprendiz dos Guardiões, de olhos atentos e palavras gentis: Orren. Ele ficou ali, segurando a mão dela até a dor passar.

No dia seguinte, ele lhe deu um grimório antigo, dizendo: "Você nasceu pra conjurar luz."

Foi naquele instante que Aelys soube. E nunca conseguiu esquecer.

Agora, sentada entre flores nobres, ela se perguntava se aquele amor teria algum espaço num mundo cheio de silêncios.

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A conversa no jardim

Kátyra surgiu ali minutos depois, ainda com os olhos marejados do confronto com Tharion, mas tentando esconder. Sentou-se ao lado de Aelys e suspirou fundo.

— É estranho... crescer num palácio com tudo... e descobrir que talvez nunca tenha conhecido o próprio povo.

Aelys não disse nada.

— Mas pelo menos sempre cuidamos dos nossos. O Reino... sempre ofereceu educação aos jeangles. E os curandeiros... nossos hospitais... não é? — disse Kátyra, tentando soar confiante.

Aelys apenas abaixou os olhos, sorrindo com tristeza.

— Nem sempre. Nem em todos os lugares.

— Mas a estrutura existe — insistiu Kátyra.

— Às vezes a estrutura é só uma moldura bonita em volta do vazio — respondeu Aelys. E se levantou, deixando Kátyra sozinha com o peso da dúvida.

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