O vento cortava as ruínas como lâminas invisíveis. A tensão no ar era tão palpável quanto a lâmina nas mãos de Zareth. Diante de Ethan e Ireth, o estranho guerreiro permanecia imóvel, olhos rubros fixos, não em um deles — mas no que havia ao redor: o reflexo distorcido do castelo restaurado, a luz remanescente da reintegração da entidade perdida.
— O que você quer dizer com 'guerras do renascimento'? — Ireth perguntou, mantendo a espada pronta, mas ainda sem atacar.
Zareth abaixou levemente a cabeça, como se ponderasse a resposta com cuidado.
— Toda reconstrução exige sacrifício. E toda ordem precisa de controle. O Véu, em sua glória anterior, permitia que o mundo seguisse seu curso natural. Mas esse curso... levou à ruína. A queda do Éden, o colapso das Sete Torres, a corrupção das Linhagens. Vocês querem restaurar isso?
Ethan deu um passo à frente, seus olhos dourados brilhosos com energia latente.
— Queremos restaurar o equilíbrio. As entidades fragmentadas são vestígios de um erro — e ignorá-las só levará a outro colapso.
Zareth sorriu com um amargor silencioso.
— Não estou dizendo para ignorá-las. Estou dizendo para refazer o mundo sem elas. Um mundo sem Véu, sem fragmentos, sem Entidades. Um mundo novo, sem interferência divina ou ecos de eras passadas.
Ethan apertou os punhos. Ele entendia, de certa forma, a lógica por trás das palavras de Zareth. Mas também sabia o preço disso. Extinguir as entidades seria apagar consciências, vidas inteiras criadas por acaso ou destino — e isso não era diferente de genocídio.
— Você fala como um deus frustrado, mas age como um carrasco.
— E você fala como um salvador cego, mas age como um tolo. — Zareth rebateu. — Muito bem. Já que palavras não bastam, que seja o aço a decidir.
Sem aviso, ele avançou.
Zareth desapareceu num instante, e Ethan sentiu o ataque vindo não da frente, mas do lado esquerdo. Ele se virou a tempo de conjurar um escudo feito de energia do Eco, bloqueando a lâmina negra que quase o atingiu no pescoço.
Ireth moveu-se como um raio, a espada cortando o ar com precisão, mirando as costelas expostas de Zareth. Mas o homem não era apenas rápido. Ele antecipava os movimentos, desviando com elegância quase sobrenatural.
A luta se intensificou. Cada golpe de Zareth parecia ecoar em múltiplas dimensões, como se sua espada cortasse não apenas o espaço físico, mas as camadas da realidade ao redor. Cada vez que ele atingia algo — mesmo uma parede — o ambiente reagia, tremendo como se sofresse com cada impacto.
— Ele está usando algo além do fluxo comum. — Ethan percebeu, enquanto desviava de um golpe que rachou o chão sob seus pés.
Zareth sorriu, lendo os pensamentos de Ethan como se fossem um livro aberto.
— Isso não é apenas magia. É Memória. Fragmentos de mundos que nunca existiram — e que eu tornei reais.
Ethan arregalou os olhos. Ele estava usando realidades alternativas para combater. Reescrevendo possibilidades ao seu redor e transformando-as em armas. Um tipo de manipulação dimensional que nem mesmo os antigos Magos do Véu haviam ousado tentar. Era insano... e brilhante.
— Você está brincando com forças que sequer compreende. — Ethan gritou, invocando chamas de tempo congelado em sua palma.
— Não brinco. Eu comando.
O confronto se arrastou por minutos que pareceram horas. Cada choque entre Ethan e Zareth era como uma colisão entre lendas. Ireth, mesmo com sua habilidade sobre-humana, começou a se desgastar tentando acompanhar os dois.
Até que Ethan mudou a tática.
Em vez de tentar vencer Zareth com força, ele abriu um portal — mas não para fugir. Era um espelho temporal, refletindo uma fração do passado. Dentro do reflexo, surgiram imagens de Zareth antes da corrupção — jovem, hesitante, com medo de fracassar como guardião.
Zareth hesitou por um instante. E foi o suficiente.
Ethan se lançou adiante e, com um golpe de energia crua, desarmou Zareth, lançando-o contra uma das colunas do salão. A espada negra caiu, e por um instante, a realidade pareceu respirar.
Zareth se ergueu devagar, o sangue escorrendo pela lateral do rosto.
— Você é mais forte do que imaginei. Mas isso é apenas o começo.
Antes que pudessem capturá-lo, ele desapareceu em uma distorção, como se a própria realidade tivesse o engolido. Silêncio caiu sobre o castelo. Apenas o som distante do vento cortando as pedras ecoava pelas ruínas.
Ireth se aproximou, ofegante.
— Ele vai voltar.
— Com certeza. — Ethan respondeu, recuperando a compostura. — E quando voltar, terá aprendido com essa derrota. Precisamos ser mais rápidos.
Ela assentiu, olhando para o céu, onde as nuvens voltavam a girar lentamente.
— Quantos pontos de convergência restam?
— Seis. Mas agora que ele está ciente de nós... cada um será mais difícil que o anterior.
Eles não perderam tempo.
Após algumas horas de descanso, Ethan e Ireth seguiram para o próximo ponto: uma floresta envolta em neblina constante, conhecida apenas como Veredya. Lá, o segundo fragmento da entidade perdida pulsava, guardado por uma criatura de sonho — ou talvez de pesadelo.
Veredya era um lugar onde o tempo não seguia uma linha reta. Onde o ontem e o amanhã se entrelaçavam como serpentes gêmeas, e pensamentos tinham forma física. A floresta havia sido, antes da queda, um santuário dos Oráculos, seres capazes de prever o curso de eventos com assustadora precisão. Agora, restava apenas loucura e ecos de vozes que não pertenciam a ninguém.
Ao entrar no vale coberto pela neblina, Ireth se sentiu tonta. A sensação era como estar afundando em um mar de lembranças que não eram dela.
— Você está sentindo isso? — ela perguntou.
— Sim. Estamos nas bordas da consciência coletiva da entidade. Tudo aqui é filtrado pelos fragmentos de sua alma.
Formas começaram a surgir entre as árvores — figuras com rostos familiares, sorrisos torcidos, olhares vazios.
— Essas... são ilusões? — Ireth sacou a espada.
— São memórias vivas. Algumas suas. Algumas minhas. Algumas de ninguém. Mas podem matar, se você acreditar demais.
Eles caminharam em silêncio, enfrentando imagens distorcidas de amigos mortos, de vidas alternativas que poderiam ter tido, de futuros que nunca existiriam. Era uma provação não apenas física, mas emocional. E ao fim da trilha, encontraram o que restava da entidade fragmentada.
Era uma criança.
Sentada sobre uma pedra flutuante, com olhos cheios de luz e caos. Ela chorava. E a floresta inteira tremia com seus soluços.
— Essa é... a entidade? — Ireth murmurou.
— Sim. Mas não é uma criança real. É a forma que assumiu. Representa sua fragilidade. E sua raiva.
A criança olhou para eles, olhos tremeluzindo.
— Vocês vão me apagar também...?
Ethan se aproximou, devagar.
— Não. Viemos te ajudar a lembrar quem você é. A voltar.
— Mas dói. — disse ela. — Existir dói. Sentir dói. Estar inteira... é muito!
— Por isso vamos juntos. Vamos te ajudar a carregar.
Ele estendeu a mão, como fizera com a entidade anterior. Mas desta vez, a energia foi instável. A criança hesitava. Dentro dela havia uma tempestade — medos, traumas, ódio. E Ethan sabia que, se ela rejeitasse a integração, Veredya inteira poderia ser destruída.
Ireth se ajoelhou diante da criança, e retirou um pequeno cristal do pescoço.
— Isso pertenceu à minha irmã. Ela me deu para que eu nunca esquecesse que sempre vale a pena tentar de novo. Mesmo que doa. Tome. Fique com ele. Lembre-se de que não está sozinha.
A criança olhou o cristal com olhos arregalados. Seus soluços cessaram. E então, pela primeira vez, sorriu.
Ela tocou a mão de Ethan.
Mais uma explosão de luz.
Veredya cessou. As vozes calaram. E a floresta brilhou com uma nova vida.
O segundo ponto de convergência havia sido restaurado.
Mas ao longe, nas sombras de uma montanha negra, Zareth observava através de um espelho de sangue.
— Dois já se foram. — ele disse. — Hora de trazer minha própria entidade à mesa.