O mundo está apagando lentamente.
Não com explosões ou invasões. Mas com o esquecimento. Como uma doença que se alastra pela memória coletiva, os nomes desaparecem, as datas deixam de fazer sentido, e pessoas acordam sem lembrar quem são.
Em meio ao caos sutil, apenas alguns poucos ainda lutam para manter viva a lembrança do que aconteceu.
E agora, essa esperança repousa sobre uma única criança.
O vento soprava frio nas terras do sul, onde as montanhas baixas se fundiam com planícies enevoadas. Entre aldeias esquecidas e estradas que levavam a lugar nenhum, Ireth e Elira cavalgavam em silêncio.
A busca levou semanas. As trilhas de energia mágica eram tênues — quase imperceptíveis. Mas estavam lá, como fios dourados esticados no tecido da realidade, conectando o presente a um passado que teimava em sumir.
Até que encontraram uma vila cercada por névoa eterna. Nenhum nome. Nenhum símbolo.
Mas Elira sentiu.
— Ele está aqui.
Ireth desmontou e andou a pé até uma casa isolada, de paredes brancas e teto de madeira escura. Do lado de fora, uma mulher lavava roupas com expressão vazia.
— Desculpe incomodar… você tem filhos? — perguntou Ireth.
A mulher hesitou.
— Acho que sim… às vezes ouço risos à noite. Mas quando olho… não tem ninguém.
Elira avançou e olhou para a janela do andar de cima. Algo — ou alguém — a observava dali.
— Tem alguém ali.
Correram escada acima, invadindo a casa como uma tempestade. A porta rangeu ao ser aberta… e lá estava ele.
Um garoto de cerca de dez anos, sentado no chão. Cabelos negros, olhos cor de âmbar — intensos, como os de Ethan. Ele brincava com uma pequena esfera metálica, que pulsava com uma energia familiar.
Ao ver Ireth, o garoto sorriu.
— Você demorou.
Ireth congelou.
— Você… me conhece?
— Claro. Você era amiga dele. Do homem da espada.
Elira caiu de joelhos.
— Você se lembra do Ethan?
O menino assentiu, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Ele me protegeu quando tudo caiu. Me deu essa pedra. Disse que um dia vocês iam voltar… que eu seria a chave.
Ireth se aproximou e tocou a esfera. Sentiu um choque mágico — um resíduo direto do Elo Duplo.
Era um fragmento da essência de Ethan.
— Ele deixou parte de si com você. Como um farol. — murmurou ela.
Mas antes que pudesse falar mais, o chão tremeu.
A névoa ao redor da vila escureceu. Tornou-se densa, negra. E dela, figuras começaram a surgir — não eram pessoas. Eram ecos distorcidos da realidade, como sombras tentando lembrar como ser humanas.
Criaturas do esquecimento.
— Eles vieram buscar a chave. — disse Elira, empunhando sua lança.
O garoto se encolheu, mas Ireth ajoelhou ao lado dele.
— Escuta com atenção. Você precisa lembrar. Cada detalhe. O som da voz dele. O jeito que ele te olhou. O que ele disse. Isso vai mantê-lo vivo. E vai nos levar até ele.
Lá fora, as sombras avançavam.
Mas dentro da casa… a esfera brilhou.
O menino fechou os olhos, e começou a falar:
— Ele me carregou nos braços. Disse que meu nome era Lior. Que eu significava "luz em meio ao esquecimento". Ele… ele sorriu. Mesmo machucado. Disse que o mundo precisava de uma lembrança viva. E me deu isso.
A esfera brilhou intensamente. Rúnicas surgiram ao seu redor. Uma runa de proteção, uma de memória, e… uma terceira. A runa do Elo Duplo.
Ireth puxou o garoto e ergueu a esfera. A energia ativou um círculo mágico em torno da casa — e as sombras hesitaram, rugindo como feras feridas.
Mas uma delas atravessou.
Elira correu, enfrentando-a de frente. A sombra gritou, tentando devorar sua mente, mas ela cravou a lança no peito vazio da criatura.
— Lembrem-se! — gritou ela. — Enquanto lembrarmos, elas não vencem!
O menino agarrou a mão de Ireth.
— Posso levá-los até ele. Mas não vai ser fácil. Ele está muito longe… em um lugar sem tempo. Sem nome.
— Você vai conseguir. — disse Ireth. — Você é a âncora. E nós somos a corrente.
No Vazio, Ethan abriu os olhos de novo.
O brilho da esfera o alcançou. Fraco, mas presente.
— Lior… — sussurrou.
Pela primeira vez em eras, sentiu algo mais do que vazio: esperança.
Mas a entidade já sabia.
O esquecimento se agitou, e o vazio estremeceu.
— Eles estão tentando trazê-lo de volta. — sibilou a voz.
Ethan se ergueu. Cambaleante. Mas determinado.
— Você pode apagar o mundo inteiro… mas enquanto houver um só que se lembre de mim, você nunca vai vencer.
O Elo Duplo começou a reacender.
E Ethan, o herói que ninguém mais lembrava, deu o primeiro passo de volta à realidade.