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Capítulo – “Entre Páginas e Portais”
O cheiro de couro antigo, velas gastas e pó de pergaminho preenchia o salão da Biblioteca do Norte. Aelys estava tão concentrada que mal notava o tempo passar — os dedos deslizando pelas páginas como se procurassem algo que sempre esteve ali, escondido entre linhas apagadas.
Até que… as palavras surgiram.
Não todas de uma vez, mas como se alguém invisível estivesse escrevendo com tinta prateada, revelando, letra por letra, o conteúdo do misterioso tomo que se recusava a ser lido.
— Kátyra! — chamou, com um sorriso que era metade triunfo, metade euforia.
Kátyra entrou com um pão na mão, mastigando lentamente, com expressão de sono e desinteresse.
— Se for mais uma ilusão, juro que vou dormir até o próximo eclipse.
Aelys apontou para o livro.
— Não é ilusão! Olha! Ele fala sobre o Caleum! E sobre o... Ardente!
Kátyra se aproximou, leu a primeira frase e soltou um riso.
— Ah, isso? Tharion já me contou. Que ele era o tal rei do Sul, o Ardente, herdeiro dos Portais... essas coisas dramáticas.
Aelys bufou, indignada.
— Você tá brincando?! Eu quase queimei minhas pestanas lendo esse negócio invisível por três noites!
Kátyra deu de ombros.
— Ele me contou enquanto estávamos sendo atacados por cães-das-cinzas. — deu outra mordida no pão. — Teve toda uma cena... juro que ele até fez pose.
Aelys se jogou na cadeira com um gemido frustrado.
Enquanto isso, Tharion estava do outro lado da biblioteca, cercado por uma pilha de livros empoeirados que iam desde “Tratado Antigo dos Caminhos Entre Reinos” até “Ishelan e os Portais do Fim”. Ele folheava com atenção, os olhos passando rápido pelas linhas.
— Esses portais... não são apenas caminhos. São decisões. Escolhas deixadas por entidades maiores. — murmurou, mais para si do que para as outras.
Kátyra ergueu uma sobrancelha.
— E você já fez sua escolha?
Tharion respondeu sem olhar para ela.
— Não... mas parece que Ishelan fez.
– Terras Baixas mais tarde.
O dia estava claro, mas o frio percorreu as colinas como se a morte sussurrasse aos ventos. Aldeões corriam pelos campos, batendo sinos e gritando avisos. Os animais estavam inquietos, e até as flores se retraíam como se soubessem o que se aproximava.
Ishelan havia retornado.
Sua presença era uma distorção na realidade — o chão estalava ao seu redor, o ar ficava pesado. Uma figura coberta por mantos escuros, com olhos brilhando como fogueiras antigas, caminhava pelas trilhas de barro, olhando tudo com calma aterradora.
— O sangue voltou à terra. — murmurou, enquanto uma criança o observava ao longe, hipnotizada.
Ele parou. Sorriu.
— E o portador está acordando.
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Perfeito! Vamos montar esse trecho com o clima tenso e sombrio que o momento exige — o Salão dos Ursos como palco de uma quase ruptura, um rei à beira do colapso, e o medo coletivo diante do desaparecimento das crianças:
– “O Eco das Ausências”
O Salão dos Ursos, outrora símbolo de firmeza e glória, agora parecia um mausoléu coberto de ecos e silêncio. As chamas da lareira central dançavam trêmulas, incapazes de aquecer os ânimos.
Na longa mesa de pedra esculpida, os Guardiões debatiam entre si, as vozes alternando entre acusações, murmúrios de pânico e sugestões desesperadas. As cadeiras dos Darxas estavam vazias, como um presságio.
O Rei Dimitry mantinha-se de pé, com as mãos apoiadas sobre o encosto de sua cadeira. Os olhos estavam fundos, a barba por fazer, o olhar distante. Ele não falava há minutos — observava.
E por fim, falou.
— Doze crianças. Doze. Em cinco dias. — a voz saiu grave, rouca. — Nenhuma pista, nenhuma relíquia ativada, nenhuma sentinela notou... nada.
Silêncio.
O Clã do Grifo culpava o vento: portais abertos.
O Clã do Cristal dizia que havia uma força maior por trás — algo que estava apagando as crianças da memória mágica do mundo.
Os Eruditos do Leste insistiam que era obra de um traidor entre eles.
Os mais velhos cochichavam que era o prenúncio de um novo eclipse sombrio.
E o Conselheiro Arion, guardião do saber da Casa do Urso, ousou dizer:
— Majestade... talvez seja a hora de negociar com os Ataxas.
O salão gelou.
Dimitry encarou Arion. Por um instante, a raiva se insinuou, mas morreu em seus olhos cansados.
— E se eles forem os culpados? Negociar com sombras que talvez tenham levado nossa herança? Nosso sangue? — a voz quase quebrou. — Meu filho era só um menino... e sumiu diante de três guardas. Eles nem ouviram os próprios passos...
O chão parecia tremer com sua dor.
Cora, sentada à sua esquerda, manteve a cabeça baixa, as mãos apertadas no colo. Ela sentia cada sílaba de Dimitry como um espinho cravado na carne.
Atrás dela, Adam estava ausente — e todos ali sabiam que, com a morte do velho rei, a força dos ursos enfraquecera.
Um dos Guardiões ergueu-se:
— Se nem mesmo o Reino do Norte pode proteger suas crianças, o que dirá das vilas ao sul? O medo se espalha. Os portais estão em ebulição. O povo já não nos obedece.
Dimitry virou-se, o manto negro esvoaçando.
— Se for preciso, eu marcho sozinho pelas Terras Proibidas para trazê-los de volta. Nem que eu morra gritando seus nomes no abismo.
— e então, em voz baixa:
— Mas não me falem em rendição. Não me peçam para negociar com demônios vestidos de homens.
Ninguém respondeu.
O conselho estava à beira do colapso.
O reino... logo atrás.
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– A Luz no Jardim
A noite estava densa como um manto de veludo negro, e a biblioteca dormia. Nem mesmo os ventos ousavam atravessar os vitrais coloridos; apenas o silêncio ocupava os corredores. Tharion não sabia por que acordara. Algo — talvez o vazio no peito — o puxara pelos pés até as escadas em caracol, até o jardim interior, onde as folhas dormiam sob o orvalho.
Lá estava ele.
Titos.
Em pé, descalço, entre as flores murchas do velho jardim da biblioteca. Seus olhos brilhavam com uma serenidade que já não pertencia ao mundo dos vivos. Tharion prendeu a respiração.
— Titos…?
Mas o menino não respondeu. Levou o dedo aos lábios, pedindo silêncio. E então, como se o próprio coração do pequeno se tornasse farol, uma luz suave brotou do peito de Titos — pulsante, como o coração de um recém-nascido. A luz não feria, não cegava. Aquecia.
Ele então apontou para trás.
Tharion se virou devagar… e lá estava Adam.
O rei dos antigos dias. Trajava o manto cerimonial dos Guardiões da Luz, mas havia algo mais: uma aura de tempo e eternidade que nenhum tecido poderia conter. Seus olhos tinham a mesma profundidade da primeira alvorada, e seu rosto, embora sério, carregava um riso escondido nos cantos.
— Ainda faz um bocado de barulho, esse cinete… — disse Adam, sem que seus lábios se movessem. A voz soou dentro da mente de Tharion, suave como lembrança de infância.
Tharion olhou para a própria mão — e lá estava o cinete.
— Ele o usou na rainha, não foi? — continuou Adam, os olhos voltando a brilhar — Meu neto. Que pena...
Tharion tentou falar. Perguntar. Gritar. Mas a garganta se negava. As palavras pareciam pesar toneladas. Tudo que conseguiu foi erguer os olhos — e encontrar ali, naquela presença antiga, uma aceitação silenciosa.
Adam sorriu, então. Um sorriso tão triste e cheio de amor que poderia curar o mundo.
Depois, explodiu em luz.
Titos sumiu junto.
O jardim voltou a ser apenas jardim.
E Tharion estava sozinho.
Mas não vazio.
Voltou ao quarto sem entender como, os dedos ainda apertando o cinete, que agora tinha o calor de algo vivo. Kátyra dormia em posição fetal, o rosto semi-enterrado no travesseiro. Ela murmurava algo entre sonhos, talvez o nome do filho perdido. Talvez o nome de Tharion.
Ele deitou ao lado dela sem dizer nada.
As lágrimas vinham, mas paravam antes de nascer.
Ficou ali, de olhos abertos, ouvindo o silêncio entre os batimentos do próprio coração. E segurando firme o cinete.
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