Cherreads

Chapter 69 - Ecos de cristal.

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– Quarto Escuro

As portas se fecharam com um baque seco.

Cora foi empurrada para dentro do aposento sem janelas. O cinete tilintava em seu pescoço a cada passo. O silêncio era total, exceto pelo som metálico e humilhante. O ar era úmido, antigo. Não havia cama, nem lamparina. Apenas pedra.

Ela recuou, encostando-se na parede, o peito arfando de raiva e incredulidade.

— Dimitry... maldito seja... — sussurrou, com a voz embargada.

E então, um barulho.

Um ronronar estranho, quase inaudível. Um som que não combinava com aquele lugar.

Do chão escuro, dois vultos ergueram-se. Tharion e Orren, vestindo mantos negros. O primeiro segurava uma pequena criatura felina, coberta por sinos minúsculos. O animal não miava, apenas caminhava, tilintando devagar.

Tharion falou, baixo:

— Esperamos que a senhora esteja disposta a sair daqui com dignidade.

Cora arregalou os olhos.

— Tharion? Orren? O que... o que está acontecendo?

Orren se aproximou, retirou com cuidado o cinete de seu pescoço e o amarrou na coleira do animal.

— O rei nos deu ordens diretas. É tudo encenação. A cela está vigiada, e os corredores, cheios de ouvidos leais ao inimigo. Mas aqui...

Tharion puxou uma alavanca oculta na parede. Um trecho do chão tremeu e uma porta se abriu lentamente, revelando uma passagem estreita.

— Aqui só passam aqueles que sabem o caminho.

Cora, atônita, assentiu, mas o olhar dela ainda fervia.

— Ele me chamou de louca... me humilhou...

— E chorou ao fechar a porta — completou Tharion. — O que ele fez hoje... foi o preço por manter você viva. E proteger a princesa.

Eles desceram juntos pela passagem. Os sinos da criatura ecoavam para trás, no escuro, simulando a presença da rainha no quarto sombrio.

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– Biblioteca Oculta

"A rainha não percebeu que não estava mais em seu mundo."

Um passo, e o salão dourado desvaneceu-se como fumaça. O ar mudou, ganhando o frescor silencioso de lugares antigos. À sua frente, erguia-se a "Biblioteca de Cristal", suas paredes translúcidas refletindo luzes dançantes, como se as próprias estrelas tivessem se aninhado entre as prateleiras.

Foi então que "Kátyra", sua filha, levantou-se de entre os tomos polidos. Seus olhos, tão parecidos com os do pai, brilharam de alívio. Nas mãos, carregava um "pergaminho amarrado com fio de prata" – e nele, gravado a sangue e tinta, o "selo do urso".

— Mãe... — sussurrou, como se temesse quebrar a magia do lugar.

Ela ergueu os olhos quando viu a mãe. E sorriu com alívio e dor ao mesmo tempo.

Sobre a mesa, repousava uma bandeja de doces.

Cora correu até ela e a abraçou como se o mundo estivesse desmoronando.

Kátyra, com voz suave, leu em voz alta:

"Minha Amada Rainha,"

Sinto muito por tudo que viste e ouviste no salão do trono. Nem todos os olhos que nos cercam são leais, nem todos os ouvidos merecem confiança. Aproveita estes dias com nossa filha e os pequenos – que seu sorriso ilumine os em minha ausência.

Pena não poder dar-te mais que três dias... Mas cada instante teu aqui é um suspiro de paz neste reino de sombras.

Com amor,

"Dimitry"

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–O Encontro com o Erudito

As prateleiras da Biblioteca se abriram como se respirassem. Um sussurro ecoou entre os cristais:

— Nem toda prisão é feita de grades. Algumas... são herdadas no sangue.

Cora virou-se com o coração preso à garganta. Do centro da cúpula translúcida, desceu um vulto. Vestia túnicas feitas de escamas de vidro e fios de prata. O rosto coberto por uma máscara sem olhos, mas os livros ao redor tremiam com a sua presença.

— Você é... o Erudito?

— Alguns me chamam assim. Outros preferem Aquele Que Lembra. Mas hoje, sou apenas um espelho para uma rainha cansada de ser forte.

Cora hesita. Quase quer correr. Mas há algo nele que a prende. Ele se aproxima e encosta dois dedos sobre a têmpora dela. A memória explode: cenas do passado, de quando era jovem, de quando sonhava com amor e não com guerra, de quando segurou Kátyra nos braços pela primeira vez e viu as asas que ela teria no futuro.

— Por que me mostra isso? — ela sussurra.

— Porque o rei mentiu quando disse que essa guerra era só de herdeiros. É também dos que ainda lembram como amar. E você, rainha... ainda ama

Cora não disse nada. Apenas segurou firme a mão da filha. E então, olhou para Tharion.

"Orren"bufou:

— "Dimitry jurou que ninguém notaria a diferença. Mas se algum servo resolver oferecer chá para aquele bicho, estamos todos ferrados."

– Ecos de Cristal.

A luz líquida que escorria das cúpulas da Biblioteca de Cristal criava reflexos dançantes nas colunas translúcidas, como se o próprio céu lesse as palavras gravadas nas paredes. O som era o de um templo: folhas virando, passos suaves, suspiros contidos.

Cora não esperou os protocolos. Quando viu Titos à frente do grupo, com a mesma expressão inocente e doce de sempre, soltou um pequeno soluço e correu até ele. Os braços da rainha envolveram como uma barreira , com força, como se o mundo pudesse desabar e só ele pudesse segurá-lo no lugar.

— Você cresceu… — sussurrou ela, a voz embargada. — Por todos os ventos, você cresceu…

Titos retribuiu o abraço sem palavras, apenas pousando a mão sobre os cabelos da rainha, como um pai que reencontra a filha perdida.

Mas o que desarmou por completo Cora foi o som de um chorinho suave. Ela afastou-se um pouco, virando-se para Kátyra, que segurava Lyora nos braços.

Por um instante, o tempo parou. O coração de Cora pareceu engasgar.

— Posso...? — ela perguntou, num sussurro.

Kátyra assentiu. Com reverência, como quem segura um feitiço sagrado, Cora pegou Lyora no colo. Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Ela é... perfeita. Ela é luz… — murmurou.

Atrás delas, o Erudito observava em silêncio. Quando a rainha ainda acariciava os cabelos da criança, ele deu um passo à frente.

— Alteza… com sua licença — disse ele com voz tranquila, mas firme. — Seria sensato deixar os outros descansarem. A princesa tem perguntas… e o tempo, infelizmente, ainda não é nosso aliado.

Cora levantou o olhar, surpresa pela interrupção — mas algo na entonação do Erudito a fez assentir, relutante. Ela devolveu Lyora com um beijo na testa da menina e seguiu o Erudito e Kátyra por uma das alas internas da biblioteca, onde as estantes se curvavam em espirais douradas.

Enquanto isso, no jardim suspenso — onde flores etéreas flutuavam sobre fontes de cristal — Orren e Aelys se afastavam do grupo. Ele lhe ofereceu uma fruta prateada, arrancada de uma árvore com folhas que sussurravam versos. Aelys mordeu com cuidado, os olhos fixos nos dele.

— Tem gosto de céu — ela comentou, sorrindo.

Orren se aproximou, pegando uma pétala que caíra nos cabelos dela. — E você tem cheiro de caos. Daquele bom.

Riram. Os risos se misturaram com a brisa. Então Orren tocou-lhe a mão. E Aelys não afastou.

Na galeria das constelações, Tharion se mantinha afastado. O Erudito o alcançou, observando-o com olhos penetrantes.

— Você o viu, não foi? — disse ele, sem rodeios.

Tharion franziu o cenho. — Quem?

— O sangue. A semente. O que se erguerá.

O silêncio entre eles se adensou. O Erudito deu um passo mais perto.

— Cuide do que ama, mesmo que não compreenda. Há peças em movimento que nem os deuses ousariam tocar.

Tharion manteve o olhar firme, mas algo na voz do velho homem o desconcertou. Como se ele falasse de um destino já escrito. Ou de um final inevitável.

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